Esquerda, direita e religião: como as ideologias políticas se conectam com a fé e o ateísmo

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As divisões políticas entre esquerda e direita não influenciam apenas governos e partidos. Elas também moldam, ao longo da história, a forma como religiões e crenças se posicionam no debate público. Mas, afinal, de onde vêm essas ideologias, quais suas ideias centrais e como elas dialogam com a fé ou com o ateísmo?

De onde surgiram as ideologias
A distinção entre esquerda e direita nasceu no parlamento francês, após a Revolução de 1789. Quem se sentava à esquerda defendia mudanças profundas, como mais igualdade social e poder para o povo. À direita, estavam os que buscavam preservar tradições, hierarquias e a ordem estabelecida.
Com o passar dos séculos, a divisão ganhou densidade teórica. A esquerda encontrou respaldo em pensadores como Karl Marx e Friedrich Engels, que criticaram a exploração econômica e defenderam a coletivização dos meios de produção. Já a direita passou a ser estruturada a partir de autores como Edmund Burke, que valorizava o peso da tradição, e, mais tarde, Friedrich Hayek e Milton Friedman, que viam na economia de mercado a chave para preservar liberdades individuais. Essas visões não apenas organizaram o debate político, mas também influenciaram modos de vida, culturas e até práticas religiosas.

Esquerda, direita e a fé
A relação entre ideologia e religião nunca foi neutra. A esquerda, em diversos momentos, enxergou a religião como ferramenta de manutenção de privilégios e desigualdades. Marx chegou a chamar a fé de “ópio do povo”, ecoando a crítica de que a religião poderia alienar. No entanto, também houve uma apropriação crítica dentro do próprio campo religioso: a Teologia da Libertação, surgida na América Latina no século XX, uniu o cristianismo ao discurso socialista, colocando os pobres e marginalizados no centro da missão pastoral. Essa corrente mostrou que fé e progressismo podem caminhar juntos, especialmente quando a religião é usada como instrumento de transformação social.
A direita, por sua vez, construiu vínculos duradouros com a fé organizada. O conservadorismo valoriza a religião como guardiã da moralidade e da coesão social. Em muitos países, igrejas cristãs, tanto católicas quanto evangélicas, estiveram associadas à defesa da família tradicional e da ordem cultural. A fé, para essa visão, não é apenas individual, mas um pilar essencial de identidade coletiva e estabilidade social.

O papel do ateísmo
No campo da esquerda, o ateísmo encontrou mais espaço, especialmente em correntes marxistas e socialistas que viam a religião como uma ideologia legitimadora de desigualdades. Ainda assim, nem toda esquerda é ateísta: movimentos progressistas religiosos mostram que a crítica não é necessariamente à fé em si, mas ao uso dela como mecanismo de poder. A esquerda mais contemporânea, inclusive, tende a aceitar a pluralidade de crenças, defendendo a laicidade como forma de garantir liberdade religiosa.
A direita, ao contrário, mantém uma distância histórica do ateísmo. Correntes conservadoras e liberais enxergam a religião como componente de ordem e estabilidade, associando a ausência de fé a uma possível erosão moral. Dessa forma, mesmo em países de maioria secularizada, partidos de direita frequentemente defendem a manutenção de símbolos e tradições religiosas na esfera pública como forma de preservar identidades nacionais e culturais.

Qual religião está mais próxima de cada lado?
No campo da esquerda, as expressões mais visíveis são encontradas em setores do cristianismo progressista, como na Teologia da Libertação, além de parte do judaísmo reformista e de religiões ligadas a movimentos sociais. Essas vertentes valorizam a solidariedade, a justiça e a inclusão, dialogando com princípios igualitários e comunitários.
Na direita, a aproximação é mais clara com o cristianismo conservador, que se manifesta tanto no catolicismo tradicional quanto nas igrejas evangélicas e neopentecostais. Essas tradições religiosas colocam a defesa da família, da moral e da hierarquia como princípios centrais, alinhando-se a ideologias políticas que buscam preservar valores históricos e culturais. Pesquisas sociológicas reforçam esse quadro: o cristianismo conservador, em especial nas Américas, é o que mais concentra adeptos identificados com pautas de direita.

Esquerda, direita e religião no Brasil
No Brasil, as relações entre religião e ideologia política ganharam força principalmente a partir da segunda metade do século XX. Na esquerda, a Teologia da Libertação teve impacto decisivo ao aproximar a Igreja Católica de movimentos sociais e sindicatos. O cristianismo progressista, inspirado em passagens bíblicas que falam da libertação dos pobres, tornou-se um dos pilares ideológicos de setores do Partido dos Trabalhadores (PT) e de movimentos populares. Autores como Frei Betto foram fundamentais para esse diálogo entre fé e política.
Na direita, a ascensão das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais redefiniu o cenário político a partir da década de 1980. Esses grupos religiosos, com forte presença na vida cotidiana e na mídia, passaram a defender pautas conservadoras, como a valorização da família, a rejeição a determinadas pautas de costumes e a defesa da moral cristã como princípio de organização social. Isso se traduziu em bancadas religiosas no Congresso e no apoio a candidaturas alinhadas ao conservadorismo.
Assim, o Brasil exemplifica como fé e política podem caminhar em sentidos diferentes: enquanto setores da esquerda buscaram inspiração no cristianismo social, a direita construiu uma base sólida com o cristianismo conservador, sobretudo no campo evangélico. Essa dualidade mostra como a religião se torna um campo de disputa simbólica e política.

Embora não exista uma linha rígida entre fé e política, os padrões são visíveis: a esquerda, crítica ao poder tradicional, tende a se alinhar a expressões religiosas progressistas e a acolher parte do ateísmo; a direita, por sua vez, mantém um vínculo mais forte com a religião conservadora, que a vê como fundamento para ordem e coesão social.
No cenário atual, o cristianismo conservador é a tradição religiosa que mais compartilha valores com a direita política, defendendo hierarquia, moralidade e tradição como pilares essenciais para a sociedade.

2 opiniões sobre "Esquerda, direita e religião: como as ideologias políticas se conectam com a fé e o ateísmo"

  1. Excelente reflexão, meu caro amigo, Ivan. Sem nenhum resquício de partidarismo ideológico, com exatidão histórica e isenção no relato dos fatos. Isso é informação verdadeira, tão ausente na mídia brasileira atual. Parabéns!

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